Ante ecos e ocos
A partir do dia 17 de novembro de 2022
Mostra de longa duração localizada no anexo
“Ante ecos e ocos” é uma exposição de longa duração que apresenta a cultura afro-brasileira no Paraná a partir de objetos que integram o acervo do Museu Paranaense. A exposição é um projeto de curadoria compartilhada, formada por um grupo interdisciplinar de pesquisadores e artistas que identificaram diálogos possíveis entre interesses acadêmico, museal, artístico e representativo dos afro-paranaenses.
Seis núcleos principais desenham a narrativa dessa mostra que aborda o quilombo, o carnaval, a religiosidade, a congada, o período do pós-abolição e a capoeira. Esses conjuntos são formados por vídeos, fotografias, documentos históricos e outros materiais da história afro-paranaense sob a guarda do Museu, mas que tiveram seus hiatos e ausências preenchidos por meio de uma busca ativa da equipe de pesquisa por conteúdos complementares aos já existentes. Para isso, foram realizadas novas aquisições de esculturas, pinturas, bandeiras e até instrumentos musicais, todos relacionados à cultura negra e suas expressões.
Na tentativa de biografar ao máximo as vidas que se relacionam de alguma forma ao acervo e assim combater questões relacionadas à invisibilidade das vozes negras, foram produzidos materiais exclusivamente para esta exposição. É o caso do vídeo performance de dança "Entre caboclos e baianas", de Kunta Leonardo da Cruz, o registro em vídeo da roda de capoeira do grupo Grupo Internacional Capoeira Aliance e de gravações de depoimentos em áudio de Nelson Fernandes (Pelé, mestre de percussão e filho afetivo de Maé da Cuíca), Marize Aparecida da Silva Zeferino (a Ialorixá Mãe Marize de Omolu), Maria José Teixeira da Silva, Maria Eloina Carneiro dos Passos, Maria do Rosário Carneiro dos Passos e Ramiro Gonçalves Bispo (da Comunidade Quilombola Família Xavier), Célio Machado da Silva (bisneto do liberto Serafim Machado), Ney Ferreira (Congada Ferreira), que o público poderá conhecer no espaço expositivo.
A exposição foi criada a partir de um processo de curadoria compartilhada, a exposição foi idealizada por Bruna Reis, Diogo Duda, Emanuel Monteiro, Fernanda Santiago e Geslline Giovana Braga, e acompanhada pela equipe do Museu Paranaense formada por Richard Romanini, Josiéli Spenassatto e Felipe Vilas Bôas.
Texto curatorial
Ecos
Do verbo encarnatório falar, ecoam cicatrizes, subjetividades e vivências de negros e negras. Vidas conectadas pelas questões do presente e do passado convocam a um difícil limite, o risco de falha na tarefa de separação: a de ora estarmos diante do silêncio, a de ora estarmos diante do que foi silenciado.
Estar ante algo ou alguém pressupõe presença, frontalidade e – talvez por mera força do hábito nossa (a/os de cor) – enfrentamento. Pois que: não é estar com ou entre; nem sob ou sobre; mas ante: encarar. O ante delineia limites, recusa submissões. Descortina-se entre o Eu e o Outro tensões e inquietudes discursivas, representativas e físicas. Os corpos questionam, suas intenções aproximam e afastam, numa dança que socializa e distancia.
Ecoar, por sua vez, é fazer-se ouvir ou sentir a grande distância. No tempo e no espaço, propagações rompem o silêncio ou, no limite, o potencializam. Para que haja eco, há de haver paredes, erguendo-se como resistências que possibilitam o rebatimento. Dos ecos afro-paranaenses, surge aqui uma materialização em imagem, voz e objetos socialmente preteridos, negligenciados ou esquecidos. Trazidos da margem à baila, eles ecoam camadas e complexidades que demandam presença, abertura e atenção.
O eco age na ambiguidade entre preencher espaços e se propagar até seu esvaziamento. Pode soar sutil, como também imprimir atos de resistência ostensiva. Para ecoar, é preciso assumir o oco em seus múltiplos aspectos. Entre o direito de sonorizar e o de não querer, entre ser visto e a escolha de fazer-se oculto, de acordo com as posições que o jogo social proporciona. Se aqui o eco tem seu início, é preciso mergulhar mais fundo em seus timbres para encontrar os ocos aos quais se direciona. E não basta ouvi-los a distância.
Ocos
Ecos que preenchem ocos. A ancestralidade que emerge da Kalunga Grande, o mar atravessado por negros para chegar ao Brasil, reverbera no vão, na fenda, na falta. Milhões de africanos e africanas desterrados aqui silenciados, ausentes.
Mapear temas sensíveis, encarar e reconhecer lacunas institucionais e apostar em outros modos de operar é o que tensiona a exposição Ante ecos e ocos. Viabilizar plataformas ecoantes e historicamente dissonantes só é possível quando se reconhece o museu como espaço de disputa de memórias. Junto a esse reconhecimento, vem a identificação do incalculável débito colonial e uma urgente ação de reparação ou, ao menos, a mitigação de traumas.
Traumas presentes na narrativa da experiência marcada pelo afeto de quem viveu. Nesse vai e vém da memória, vive o que se recorda para falar e se recorda enquanto fala. A memória, como uma construção social e participativa, como a costura de uma colcha de retalhos, como o trabalho de bordadura, vai adensando, dando corpo ao fio. Essas vozes outras potencializam a biografia dos objetos resgatados e ativam as pesquisas por meio da fala de quem se propõe a costurar a memória, essas vozes que vêm da comunidade.
Entoamos um coro e escolhemos crer que o passo, por pequeno que seja, engendra em si o potencial de desarticular mundos e rearticular outros, no devir do itinerário. Com tanta lucidez quanto possível, sabemos da impossibilidade da contemplação de uma totalidade. E por isso, aqui, nos interessa a brecha pela qual entra a luz. Dado que o Novo Mundo – aquele imposto a pólvora – dá sinais inequívocos de decrepitude, mais que gastar o juízo na contemplação das decadências mundanas, ecoemos as vozes que nos chegam no exercício imaginativo e propositivo de mundos novos.
Núcleos da exposição
O paradoxo Liberdade e Escravidão é, em si, um amálgama de experiências. Sabe-se: a libertação não encerrou as desigualdades, apenas trouxe novos contornos. As estratégias de sobrevivência não ficaram no passado da escravização e a população negra mantém-se alerta mesmo no período pós-abolição. Esse tempo delimitado a partir de uma data simbólica, dia 13 de maio de 1988, converte-se em campo de estudos e fixa um recorte de segregação e violências sofridas pelas populações de africanos e descendentes a partir dali.
Do cotidiano do presente ao cotidiano do passado, há um papel que garantiria sua diferença. A experiência do racismo, no entanto, replica a condição de subalternidade nesses grupos racializados e essa linha que atravessa a margem só pode ser transposta a partir da experiência coletiva das sociedades negras. Pouco menos de um mês depois da data de abolição legal, a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio de Curitiba foi fundada: em 6 de junho de 1888. Negros livres e negros libertos buscaram formar um grupo de ajuda mútua para seus associados, com o intuito de fornecer assistência médica, acesso à escola primária, auxílio velório e um espaço de lazer seguro para as famílias, entre outras ações.
Essa estratégia coletiva de base permeou a construção de clubes sociais negros espalhados pelo Brasil. Rostos e lugares, resistência e negociação, tudo memória que conecta passado e presente na formação social paranaense. Entremeados nesses nós de uma história que não se cala, aqui se ouve Célio Machado da Silva, neto do liberto Serafim Machado, mateiro e caçador que anfitriou e orientou os engenheiros no espaço que abrigou a Usina da Chaminé, a primeira central hidrelétrica do Paraná, presente nessas cenas filmadas por Carlos Gofferjé e Vladimir Kozák – são de Vladimir também as fotografias de rostos que fazem parte do acervo do Museu. Outra personalidade forjada nesse contexto é a de Enedina Alves Marques, a primeira engenheira negra do Brasil, filha de um casal que compunha a diretoria da Sociedade Operária Beneficente 13 de maio, uma das tantas vozes que têm marcada em si a régua da liberdade.
Em um país em que a linha do tempo da liberdade ainda é tímida ao ser comparada ao tempo de escravidão em sua história, ecoar essas vivências é dever político e reafirma o direito à existência, silenciado por tanto tempo.
Se a terra, o barro, a lama originaram a vida para uns, para outros é o território do Orixá Omolu, silencioso e observador, que carrega as chagas, mantém o equilíbrio da vida e explica o início da humanidade. Da terra ao território, muitas são as formas de ativação e manifestação da religiosidade: da união de corpos católica ao jejum da revelação, da conexão com o natural divinizado ao som do atabaque. Sentir e dar sentido, o que é dito e o que pode ser dito, o som e o silêncio: dicotomias e impasses de um diálogo entre o conhecimento oral, a ancestralidade viva e as brechas e frestas das religiões de matrizes africanas em suas múltiplas feições no Brasil.
O ato de narrar é um enfrentamento aos silenciamentos sociais, raciais e institucionais que os representantes do Candomblé e da Umbanda combatem historicamente – um modo de expressar a ancestralidade com olhares do presente. Assim, se reescreve a religiosidade para além das imposições em um jogo de poderes e influências ou preceitos estáticos: ditados, trocadilhos, músicas, cores, formas, uma vela acesa, a religiosidade se espalha pelas palavras, pelos atos, pelas coisas. Tornar a experiência do divino uma prática cotidiana só é possível quando a religiosidade se espalha para além da institucionalidade, o que permite a manifestação de atitudes transversais capazes de amenizar as verdades absolutas dos dogmas.
Em um contexto de legitimação do que é escrito, a fala de expoentes como Mãe Marize de Omolu ganha ainda mais substância. A liga entre aquilo que se anuncia e a legitimidade de quem profere o anúncio é onde reside a força da palavra. A trama das religiosidades de matriz africana e suas manifestações dá liga também às memórias atreladas às festas, à fé e à vida da comunidade negra para além da escravidão. E não só. Como um amálgama, negociação e conflito atrelados à resistência de viver e existir, formas de sentir e formas de desejar e jeitos de experimentar o êxtase diante do desconhecido são o que a religiosidade costura, num arranjo que, ao ser trazido à tona, assusta e conforta, orienta e confunde, mas atravessa tudo.
Ocupar os museus agora, nas formas contemporâneas das expressões culturais, é remediar as vitrines históricas lacunares do passado, imaginando novas memórias. Jota Moçamba e sua palavra certeira nos lembra: “a plantação é cognitiva”. Se, no passado, quilombo era rota de fuga e ponto final, no presente são lugares de ação e vírgula.
As comunidades quilombolas começaram a ser mapeadas no estado do Paraná em 2005 pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura. Os números expressivos e as imagens significativas não foram suficientes para que o Estado acreditasse no que via. Como se comunidades inteiras com muitas famílias permanecessem “encantadas”. Encantada, no sentido popular e religioso, é estar invisível, como um espírito da floresta e da terra. Antes fosse. A invisibilidade não é só simbólica. Cem anos depois da escravidão, seus descendentes se mantêm invisíveis ao poder público e sem posse de suas terras. Ocuparam para existir. Resquícios de uma Lei Áurea falha, que decretou liberdade sem reforma agrária, a rebote do que pregava André Rebouças, a grande voz abolicionista da época: sem direitos, a liberdade seria efêmera.
A prova está – e não só – nas cidades onde as comunidades remanescentes de quilombos estão instaladas. Ali, a segregação continua a ferir com a violência da exclusão nos espaços sociais. E essa é sua pior forma: aquela que não é escrita em leis, muito menos admitida, mas cria resistências às existências negras. O Museu Paranaense e sua tradição não fugiram à sina do apagamento, a ver pelas lacunas do seu acervo, composto por poucos objetos rurais e pela fotografia de Fernanda Castro.
Diante desses silêncios e ausências, sobressaem-se, com força, a bandeira de São Sebastião, os relatos de sujeitos da Comunidade Quilombola Família Xavier e deveria também bastar ver Kunta Leonardo Cruz dançar. Em seus movimentos, em suas pausas e em seus pés na terra, estão as linhas e os traços das comunidades quilombolas, fiéis às suas lutas originárias, com outras perspectivas de resistência nos meios urbanos, nos palcos e nas universidades. A historiadora Beatriz Nascimento já disse: “Cada cabeça é um quilombo”. Os quilombos, hoje se sabe, estão no presente. Aquilombar é um chamado, juntar-se na luta política por terras, direito e opacidade. Pelo direito de ser quilombo onde e como quiser.
Até o carnaval sucumbiu a um discurso de negação um dia. Logo ele, essa festa onipresente na cultura imaterial do país. Organizada desde a metade do século XIX, essa manifestação de vasta cultura material, de potência sonora e visual, foi silenciada. Das ruas, no tempo de limões de cheiro lançados pelas pessoas umas nas outras, no Carnaval de Entrudo, o carnaval foi para os salões, em bailes mascarados.
A clandestinidade operou a partir de 1853, na emancipação do Paraná, quando uma série de medidas proibitivas sobre batuques, manifestações e stumpfs – bailes alemães que reuniam escravizados e libertos no centro da cidade – se fez imperativa. Na Ponta Grossa do 13 de maio, na Tibagi da Estrela da manhã, na Londrina do Arol e na Castro dos Campos Gerais, estão as tentativas de resistência a essa repressão na forma de clubes negros que fizeram com que a cultura tivesse abrigo e eco.
Sempre à margem, o carnaval também foi o corso – os primeiros desfiles carnavalescos com veículos ornamentados e recheados de críticas políticas e sociais. Em Curitiba, em 1915, o Corso Maldito maldisse as obras faraônicas do então prefeito Cândido de Abreu, a exemplo da construção do belvedere no Alto São Francisco, que desapropriou e demoliu a sede da Federação Espírita e ocupou o espaço da Sociedade 28 de Setembro, um clube social de mulheres negras. Até hoje, o corso resiste na cidade de Tibagi.
Essa dimensão crítica recorrente no carnaval teve ali seu pontapé. Depois, em 1944, foram os trabalhadores da linha férrea de Curitiba os primeiros a criarem uma escola de samba, uma mescla de música e futebol, ou o Clube Atlético Ferroviário, que logo se tornou o Colorado Esporte Clube. Um ano depois, a batucada migrou para o centro da cidade.
Uma das cabeças à frente disso foi a de seu fundador, Ismael Cordeiro, o Maé da Cuíca. Com sua morte, toda uma coleção particular, guardada em um apartamento apertado, passou a integrar os acervos carnavalescos do Museu Paranaense. O sambista agregou, com sua coleção, imagens distintas ao acervo temático, por ser única em cores e movimentos, com densidades enredadas em uma origem social popular e marginalizada, carregada de representatividade e engajamento visceral nas folias. Por 45 anos, ele tocou, compôs sambas em guardanapos, pensou em enredos e encadeou a evolução das alas. Uma vida dedicada à alegria que exalta a visibilidade em bom som, agora, sem máscaras.
Canto, coreografia, teatro e espiritualidade unem-se à memória para recriar uma coroação de um rei do Congo – daí seu nome, a Congada. No Brasil, nenhuma Congada é igual a outra. A festa remonta às irmandades católicas de escravizados e libertos devotos de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia. Essas irmandades coloniais organizavam festas em louvor aos seus santos católicos, com cortejo pelas ruas e na parte externa dos templos. Refeições compartilhadas e instrumentos musicais ocupavam o espaço público.
São Benedito é o patrono e protagonista da Congada Ferreira, que, mesmo com as insistentes ações de silenciamento perpetradas contra sua existência, tem se reinventado, há dois séculos, no coração da Lapa. No rolo do filme de Vladimir Kozák, registrado em 1951, vê-se um enredo centrado no desentendimento entre os reinos do Congo, na figura do Rei, e de Angola, na figura da Rainha Ginga. O imaginário europeu corporificado nessas figuras monárquicas é subvertido em afirmação de destaque por meio do protagonismo negro dessas figuras, da rainha ao embaixador.
Ney Ferreira, o presidente do grupo, e sua família representam não só a diversidade e a riqueza da cultura popular paranaense, como também a luta pela manutenção de suas formas específicas de ser e viver a partir do investimento individual e coletivo desses detentores de conhecimentos tradicionais. As práticas e saberes da Congada evocam as memórias compartilhadas de um processo histórico coreografado por violências coloniais e ações de resistência e de negociação, mas reivindicado como espaço de construção de uma nova memória, na oralidade e na corporeidade, ritmada pelos desejos de ser e de se autorrepresentar.
Quem nunca ouviu nosso “paranauê? Paranauêêê, paranauê, Paraná, paranauê, Paraná…”? Negou-se a presença do que reverbera tão fortemente aqui. Mas o agogô, o atabaque, o pandeiro e o berimbau ressoaram.
A capoeira individualmente foi luta, autodefesa e contra-ataque. Coletivamente, artifício contra a violência física e a violência psicológica sofrida por quem não se resignou. Na busca pela liberdade, na fuga para quilombos, a capoeira. Era no terreno de mato ralo, escondido dentro da mata, escondido dos olhos dos sinhôs e das sinhás, que se praticava o jogo desenvolvido por escravizados: coreografia de defesa e coreografia de ataque embaladas ao ritmo de instrumentos musicais e coro. Capoeira camuflada dentro da capoeira, a mata. Na vila, a luta se camuflava no samba de roda.
Com o berimbau, criou-se uma linguagem de aviso chamada cavalaria: quando a polícia se aproximava, o ritmo precisava mudar, os golpes tornavam-se passos de dança, o berimbau se deixava guiar pelo atabaque e o restante da bateria o seguia. Dentro da capoeira, camuflam-se saberes. Uma prática que resistiu à escravidão e também ajudou a acabar com ela. Proibida, criminalizada e, depois, exaltada, ao lado do samba, como símbolo da cultura nacional. Desde 2008, a roda e o ofício dos mestres são reconhecidos como patrimônio natural pelo IPHAN e, em 2014, a Roda de capoeira tornou-se Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO. Não é possível resistir a uma roda de capoeira, a própria resistência.
Jogo de corpo e de palavras, as cantigas que viajaram no tempo ecoam nas rodas, narrando o cotidiano dos capoeiristas, suas estratégias de liberdade, seus desamores e a própria vadiagem como insurreição. Ladainhas e corridos retêm um histórico de luta e permanecem construindo novas memórias, recontando a história do Brasil a partir da perspectiva de quem lutou e dançou e não aceita mais a camuflagem como existência.