Miro Spinelli: o corpo ali onde não está
“o corpo ali onde não está”, de Miro Spinelli, é um dos projetos contemplados no IV Edital de Ocupação do Espaço Vitrine do MUPA. Nesta obra, o artista apresenta uma instalação em larga escala baseada no processo da cura do sabão, utilizando aproximadamente 300 litros de óleo de fritura de reuso.
Inicialmente marrom, o óleo queimado passa por uma transformação gradual durante o período expositivo, clareando conforme o processo químico de cura. A forma abstrata, que ocupa o espaço, assume a aparência de um corpo disforme, evocando tons de pele e sugerindo mudanças orgânicas ao longo do tempo. A instalação faz parte da série “matérias em transição”, resultado de uma década de pesquisa intensa sobre as interações entre corpos, matérias e transmutações. Este trabalho é um desdobramento do projeto “Gordura Trans”, que explorou performances envolvendo corpos gordos e dissidentes de gênero em diálogo com diversos materiais gordurosos.
O Edital de Ocupação do Espaço Vitrine é um programa anual do Museu Paranaense, iniciado em 2020. que tem como objetivo trazer propostas de exposição nas áreas de Artes Cênicas, Artes Visuais, Design, Arquitetura e pesquisa em diálogo com as disciplinas científicas da instituição: Antropologia, Arqueologia e História, promovendo a interdisciplinaridade entre esses diferentes campos de atuação, em exposições gratuitas dentro do próprio museu.
Texto crítico
o corpo ali onde não está, de Miro Spinelli, integra uma profunda pesquisa do artista sobre as relações (im)possíveis entre corpos, matérias e transmutações.
Desde 2014, Spinelli desenvolve o projeto Gordura Trans, uma série de ações performativas com materiais gordurosos – como óleo de soja, graxa, manteiga e dendê. Nu, presente, envolto em substâncias viscosas, o artista estabelece – especialmente por meio do olhar – diferentes interações com espaços e públicos.
A partir de 2018, o artista amplia essa investigação para além do (seu) corpo, experimentando o encontro entre substâncias em processos químicos. Combinando óleo, soda cáustica e água, ele cria sabão: uma mistura que se espalha pelo cubo branco, sem forma, molde e imposição de contorno.
Desde então, o artista volta-se para materiais em constante mutação, distanciando-se de uma perspectiva objetual e aproximando-se da experimentação: coisas, corpos, carnes, matérias, espaços, existências – humanas e não humanas. Spinelli se interessa por transições, transformações, mudanças, variações e abstrações de várias ordens.
Suas criações não têm o "corpo" como início ou fim, mas como ação, prática, mistério. Os excessos, as gorduras, os fluidos de seus trabalhos desestruturam os marcadores, as categorias, os termos moderno-coloniais e trazem à tona "coisas" em permanente fluxo: matérias que transbordam. O vestígio desafia o espaço higienizado da galeria e a inteligibilidade do que se apresenta: meio corpo, meio espuma, meio lembrança, meio esquecimento.
A matéria incapturável nos provoca: o que poderia ser um corpo desvinculado de marcadores? Seria possível desvinculação? O que seria a matéria em estado bruto, sem a gramática cis-heteropatriarcal? Haveria estado bruto?
Na ocupação no Espaço Vitrine do MUPA, o artista trabalha com óleo queimado, criando uma grande mancha que, inicialmente marrom, clareia ao longo do processo de cura, atingindo um pH seguro para contato humano. A transformação, portanto, é também visual, já que a coloração muda com o tempo de exposição.
Ao final, tudo aqui será distribuído – também como pergunta. O gesto de (des)fazer a instalação em pequenos pedaços e convidar o público a levar fragmentos do trabalho expande a experiência performativa para além do museu. Permite que essa "coisa", esse pedaço de corpo, essa carne-sabão continue sua mudança sem fim em outros espaços, como um eco da desidentificação buscada. É como escreveu, certa vez, o artista: Transição é Sempre.
Francisco Mallmann
Sobre a artista
Artista e pesquisador. É mestre em Artes da Cena pela UFRJ, em Filosofia e em Estudos da Performance pela New York University e doutorando no mesmo departamento. Atua nas imbricações entre a performance, a escrita, as artes visuais e a teoria. Apresentou trabalhos em festivais, exposições e conferências em diversas cidades na América Latina, na Europa e na América do Norte. Trabalha de modo transdisciplinar com foco em perspectivas minoritárias. Sua prática artística e intelectual está engajada em estratégias anti-coloniais elaboradas através de um irmanamento radical com coisas, matérias e os invisíveis produzidos nas relações com e entre elas.