Núcleo Aquilombar-se

Meu nome é Ramiro Gonçalves Bispo, tenho 51 anos de idade, nasci na Fazenda Figueirinha, parece que ainda é município de Jaguariaíva.

Maria do Rosário Carneiro dos Passos, nascida na Fazenda Boa Vista, em 1956.

Maria José Teixeira da Silva, nasci na Fazenda Boa Vista, minha idade é 88 anos. 

Maria Eloína Carneiro dos Passos, nasci na Fazenda Boa Vista, no município de Arapoti. Eu nasci nessa fazenda. Eu lembro pouca coisa de lá, porque logo que comecei a conhecer o pessoal, meu pai foi para outra fazenda trabalhar. As pessoas chamavam ele – antigamente falavam de empreitada. Eles pegavam uma fazenda pra roçar, ou pra quebrar milho, ou pra tratar de porco, boi, essas coisas assim, e meu pai era um dos que eram chamados para esses tipos de serviços. Aí meu pai veio para Arapoti e ficou nas fazendas trabalhando, mas os filhos já estavam todos crescidos.

Lá da fazenda somos 14 irmãos, são 7 casais. Os que não são da fazenda são só dois, que nasceram na fazenda do município de Jaboti, mas todos os outros nasceram na Fazenda Boa Vista. De diferentes locais – um nascia perto do casarão, outro nascia num lugar chamado Arrozal, onde meus avós moravam, onde minha mãe nasceu, e eu nasci nesse lugar também, lá no Arrozal.

Maria José Teixeira da Silva, eu morei lá quase 60 anos, bem pertinho da fazenda. Desde que eu casei fiquei morando lá só, não saía de lá. Agora que eu saí de lá, perto da sede, não é na sede.

Maria do Rosário - Esses tempos estava falando pra ele: se você me perguntar qual é o lugar mais importante pra mim, eu vou falar que é a Fazenda Boa Vista. E o local da Fazenda Boa Vista onde nós morávamos, que eu me lembro muito bem, é o Papagaio. É uma coisa para nós que não tem o que tirar, porque desde que a gente morava aqui em volta de Arapoti, quando a mãe falava: “Vamos para a casa da vó”, não víamos a hora de chegar aquele dia de ir para a Fazenda Boa Vista, na casa da avó. Tomar leitinho, era tanta coisa lá, era cana, mel, tudo do sítio. Aquele tempo era tão difícil, tudo que você tinha pra comer era o que você plantava. Eles plantavam feijão, arroz, amendoim, tudo o que eles colhiam lá. Se traziam uma carne, era porco e galinha que criavam. Meu avô tinha vaca também, pescava peixe do rio que passava pertinho, bastante peixe, que hoje não tem mais, com esse negócio de muita lavoura e muito veneno, acabou com tudo, mas era um rio muito importante – o rio do Arrozal, como falavam, tinha muito peixe.

Quando meu pai casou, teve os 4 meninos mais velhos que eu, dizem que meu avô sempre falava para o meu pai: “Eu criei todos os meus filhos e não precisei empregar ninguém”. Meu avô já sabia que existiam os empregos e falava: “Eu não quero que os meus netos sejam empregados para depois ficarem sofrendo, eu quero que você crie todos os seus filhos junto com você”. Era meu avô do lado da minha mãe. E o sogro dele pedia pra ele. E o pai criou todos nós junto com ele, fazia lavoura. O pai nunca gostou que os filhos fossem empregados dos outros, tinha que trabalhar junto com ele e nós sempre trabalhamos na lavoura com o pai. 

A primeira a sair e ser empregada foi eu. O pai morava na fazenda aqui, o dono era de São Paulo e a mulher do fazendeiro pediu pra eu ajudar ela na fazenda. Daí pediu para o pai para eu conhecer a casa dela em São Paulo e o pai não queria deixar, e os outros irmãos pediram que deixasse. Fui lá e morei 9 anos com eles e estudei em São Paulo.

Dentro da fazenda tinha uma capela muito bonita e tinha uma santa grande que veio de Sorocaba trazida pelos escravos a pé – é a padroeira da Fazenda Boa Vista. Saía a festa de Nossa Senhora do Rosário de lá. Eu tenho o nome de Maria do Rosário em homenagem à Nossa Senhora do Rosário. Tinha um bico que faz parte da fazenda, do cemitério, era o campo de Nossa Senhora do Rosário, onde criavam os bois para fazer a festa dela – eles contavam para nós. 

E depois venderam, acabou. Os Xavier, que eram os donos da fazenda, venderam para outro fazendeiro e foram destruindo, acabando, foi mudando. E a minha mãe, quando casou, usou o véu que era de Nossa Senhora do Rosário. Sou devota de Nossa Senhora Aparecida, de todos os santos, mas Nossa Senhora é nossa mãe. Ela intercede todos os nossos pedidos a Jesus. Jesus que manda em nós. Ele é o Pai de todos nós aqui. 

Ramiro Gonçalves Bispo - Todo ano é realizada a Festa de São Sebastião, hoje é na Fazenda do Bucre, mas já foi em outras fazendas também. A tradição é que, no dia do santo, você pinta a imagem em uma bandeira, que é posta em mastro e depois, a procissão. É importante o resgate da tradição, tanta coisa que a gente não vê mais. São Gonçalo, hoje em 2022, pra gente é um resgate histórico. Aquilo que falavam para os filhos da gente – “São Gonçalo, mas o que é isso?” Eles iam assistir... “Ah! É assim que dança.”

Maria José Teixeira da Silva - O São Gonçalo sai lá da minha casa, na fazenda, e a dança da quadrilha é aqui em Potia. Dois violeiros ficam tocando na frente do altar do santo e faz fila de mulher e outro de homem dançando, beijando o santo.

Maria do Rosário Carneiro dos Passos - Meus irmãos foram no Incra, em Curitiba. Passaram uns meses e tinha um pessoal fazendo um levantamento para o Iphan, na Fazenda Três Pinheiros, município de Arapoti, para fazer reflorestamento. Eles vieram na prefeitura e falaram para eles de nós... A família Xavier estava trabalhando e lutando sobre a Fazenda Boa Vista, que estava em demolição, que é uma fazenda histórica, muito antiga. No cemitério tem túmulo de mil setecentos e uns quebrados. Eles disseram que queriam falar com a gente. Daí meu irmão, que mora no Jardim (?), ligou em casa e disse: “Subam aqui que vai vir um casal conversar com a gente, venham rápido aqui em casa”. Quando chegamos lá, eu com meu irmão, já estavam entrevistando meu outro irmão, João. Eles falaram: “Mas queremos ir amanhã com vocês na Fazenda Boa Vista” – o Antônio e a Letícia. Nós fomos na Fazenda Boa Vista com eles – eu, o Nelson e a minha sobrinha.

Nós mostramos e contamos nossa história: “Moramos aqui dentro do casarão, meu pai morou dentro do casarão”. O Antônio mediu em volta do casarão, mas sem falar nada para nós, não sabíamos o que estava acontecendo. Quando ele terminou de medir, perguntou pra nós: “Em que vocês querem que seja transformado aqui: patrimônio histórico ou sítio arqueológico?”. E minha sobrinha perguntou: “Qual vai dar o impedimento mais rápido?”. O Antônio disse que podia ser o sítio arqueológico e a minha sobrinha perguntou quanto tempo demorava; ele respondeu que demorava 30 dias para virem os papéis de impedimento e ela disse: “Então, que seja sítio arqueológico”, e nós concordamos. Ele fez os papéis e fomos embora, mas não demorou 30 dias e o Ministério Público chegou com o impedimento e não podia pôr a mão em nada, não podia tirar um capim daquele lugar que seria multado em milhões. 

Lá tinha terrenos que eram do nosso avô, só não tinha o documento. Os fazendeiros, antes, valorizavam muito meu avô, Pedro Lázaro... essas terras são de vocês, são dos Pedros. E daí começou o processo, o pessoal descobrindo quem éramos nós, vinham fazer reunião e conversar. Tem uns professores de Ponta Grossa, tem outros de Castro, que já estavam trabalhando com outras famílias lá e descobriram nós aqui, fizeram muitas reuniões com a gente, eles nos ajudaram muito. Começamos a ficar animados e passaram a conhecer quem éramos nós, que antes não tínhamos importância nenhuma. “Quem é aquela família?”, querendo dizer que não temos direito a nada. Nós somos de família negra e o negro não tinha direito a nada, mas agora sabemos a importância que temos. Você sabe o valor que tem, você tem orgulho daquele valor que você tem.