Núcleo Brechas e frestas da religião
Relato de Marize Aparecida da Silva Zeferino (Ialorixá Mãe Marize de Omolu)
Eu acho que cheguei na religião, como diz, todos nós nascemos da placenta com o espiritual traçado. Eu fui assim: entre meus 15 e 16 anos, comecei a ter um problema espiritual. Só que minha mãe, muito católica... Nunca tivemos problemas, alguma perturbação, porque estudei em colégio de freira, sempre teve muito catolicismo e de repente fui passando muito mal, caía, ficava meio agressiva. Foi aí que procurei sozinha um caminho espiritual. A minha iniciação foi com 16 anos e fiquei por 33 anos na mesma casa, foi minha trajetória. Já de criança fui muito quieta, reservada.
Meu pai sempre trabalhou com lavoura, sempre trabalhou na parte de açougue, sempre em frigorífico, de matar boi, e muito cedo ficou com problema cardíaco – aos 40 anos apareceu um problema cardíaco muito forte. Com 45 anos meu pai faleceu, minha mãe nunca mais casou e criou todos nós. Criou, deu estudo no que pôde, educou... Minha mãe sempre foi muito religiosa, mas foi uma grande benzedeira. Se você falasse: “Estou com dor nos meus olhos”, ela punha as duas mãos nos seus olhos, rezava e você ficava bom.
Nós sempre moramos aqui no Santa Cândida e teve crianças que ela benzeu, cuidou, casou e trouxe os filhos, porque ela morreu com 101 anos – faz três anos que perdi minha mãe. Ela sempre nos ensinou muito o catolicismo, mas sempre com essa parte dela de benzer. Minha mãe fez muita coisa pra benzer que sempre me encantou, pelas rezas, pela sabedoria. Hoje em dia tem muitos médicos, mas as crianças têm muitos problemas de vermes. Ela pegava um alho, um prato com fubá e uma faca e rezava aquilo na barriguinha da criança; quando via, a criança jogava aquilo fora. Umas coisas maravilhosas!
Que Deus tenha minha irmã, mas ela fala assim: “Por que você vai entrar pra isso? Isso é coisa do demo, que não presta”. Eu dizia: “Marion, minha irmã, o mal está com qualquer um, você escolhe o bem ou o mal. Até Jesus, no deserto, foi tentado a fazer o mal. Eu não vou para fazer o mal, vou seguir essa missão pela minha vida, pela minha saúde, minha família”. Se uma das minhas sobrinhas ou irmãs disser que tem algo... vamos ver primeiro no espiritual, daí a gente cuida do material.
Quando eu iniciei, lá na casa da minha mãe, eu tenho uma entidade que até hoje trabalho com ela. Ela veio na minha casa – eu, uma menina adolescente –, essa entidade me tomou e disse que ia arrumar um lugar. Eu fui e, quando cheguei, fui falar com meu zelador, que ficou por 33 anos; ele achou que eu já era uma mãe de santo, pela minha postura, mas eu era simplesmente uma pajem, eu cuidava de criança, de uma chinezinha. O dia que eu fui lá, ele perguntou: “De onde você é? O que você quer?”. Eu respondi: “Estou procurando uma casa onde eu possa cuidar do espiritual, pois preciso desenvolver esse espiritual”. E ele: “Mas você não é uma mãe de santo?”, eu disse: “Não, nem conheço essas coisas”.
Foi então que ele mandou me recolher no barracão, como era aqui assim. Quando eu entrei, me senti outra pessoa, meu destino estava traçado nessa casa. Ali eu joguei os búzios com ele e me falou de qual orixá que eu era, o que eu tinha que iniciar. Iniciei dentro da umbanda. As minhas primeiras obrigações foram na Nação Nagô, onde a gente fica um período de 7 dias recolhido, 21 dias de preceito, assim começou e se passaram 33 anos. Hoje estou com... acho que 50 dentro da religião.
Dentro da casa que iniciei foi uma glória pra mim, porque tudo, o pouco que passei, dentro da casa me recuperei. Tive estrutura, ensinamento, não tenho porque dizer que balancei, eu cheguei e fiquei.
É uma casa de muito axé, uma casa grande. Quando iniciei lá, tinha na parte da umbanda 100 filhos. Se tocava umbanda às quartas e sextas-feiras. Então tinha a divisão: às quartas-feiras eram os filhos de Zé Pelintra e sextas-feiras, os filhos da Cigana Carmem, do 7 da Lira. Então tinha disputa entre eles, os filhos, uns cantavam melhor, porque na sexta-feira, o 7 da Lira, depois de fazer as curas, gostava muito de samba, já a parte da cigana era mais séria. Seu Zé Pelintra não, era umbanda, era um pai.
Em termos de desenvolvimento, em termos de casa, era maravilhoso. Tudo o que sei e adquiri na minha idade que estou, foi lá da minha casa, Ilê Axé de Oyá, casa de Zé Pelintra. Minha raiz Gantois, aqui em Curitiba, sou filha de Altevir Tarachuck, neta de Antônio Fumo e bisneta de Valdomiro Costa Pinto, tataraneta de Mãe Menininha do Gantois. É uma trajetória!
Meu marido era ogã lá e decidimos ficar juntos e tocar a vida. Teve um confronto porque ele não aceitava me perder, aí a mãe Marize enfrentou um pedaço. Eu tive muita força, tive que ter muita postura. Chorei muito, porque ele não aceitou e ele era uma pessoa que gostava e de repente, como a gente diz dentro na nação, pegou uma quizila. Ele não queria me perder e perder o ogã, mas tínhamos que tocar nossa vida. Em um dia de festa foi a gota d’água pra ele e mostrou o lado ruim, muito vingativo, aquilo me doeu. Um dia eu disse pra ele: “Eu nunca mais vou derramar uma lágrima pro senhor”, a partir do momento que ele citou pra mim, e eu fiz. Eu me emociono, dá saudade do que foi tudo, mas aquilo marcou minha vida. Eu aprendi tudo com ele. Depois ele se arrependeu e pediu perdão. Eu digo: “Quem sou eu para perdoar? Deus é que perdoa”, mas ele me humilhou tanto, tanto, tanto que perdi o encanto que eu tinha.
Então eu saí, fui pra casa da minha mãe, já tinha comprado a casa do meu irmão que era no mesmo terreno da minha mãe e ali comecei com a minha parte espiritual. Passou um tempo e fiz negociação com essa casa aqui, que era bem diferente, mudei tudo e vim tocar. Ele já tinha me procurado, porque as entidades não aceitavam o que ele fez comigo, mas cada um traça aquilo que quer e ele traçou isso, a mãe dele e ele. Só que quando eu saí de lá, parece que a casa desceu. Ah, quando eu vim pra cá... Só que eu digo assim: era um homem que morava, né? E eu sou uma mulher... Cada um planta aquilo que quer.
Eu vim, foram feitas mudanças, foi feita limpeza, foi tudo. E na esquina da minha casa morava um policial e um velho na frente que fazia abaixo-assinado pra me tirar. Eu digo: “Vou enfrentar”. Passou o tempo, fomos arrumando e veio o dia da inauguração, que só faltava gente sair por essas janelas. Fechou todas essas quadras de carro e eles nunca tinham visto isso aqui no bairro, meio que se assustaram. No outro dia, esse policial veio bater na minha porta. “Bom dia, vizinha! A senhora é a nova moradora?”, e eu disse “sou”. Ele: “Parabéns”, e eu: “Obrigada, teve algum problema?”, e ele: “Não, eu moro ali na esquina, me chamo não sei o que e só vim lhe dizer que a gente às vezes julga a pessoa sem conhecer. Achei que os novos moradores iam trazer problemas, como quem estava aqui antes”, e eu: “Não, cada um é cada um, senhor. Eu tenho que respeitar o vizinho da frente, de trás, do lado e eu tenho educação que vem de berço, não estou aqui pra desafiar”. Ele continuou: “É feiticeira, que mata criança”, e eu: “O quê?”. “A senhora me desculpe e o que precisar, me procure.” Mas o velho da frente... Oh, velho chato!
Omulu é o rei da terra, rei do mundo. A força dele é a terra e o brilho dele é o sol. É um senhor que nós veneramos, que nos curvamos perante ele. Toda essa praga que teve, essa doença, nós saudamos muito Omulu pra quebrar essa praga. Omulu é sincretizado com São Lázaro. Lázaro foi o senhor, dono da lepra, é o senhor das chagas. O complemento, a roupa dele, é o Aze, as palhas. Conforme ele dança, está jogando as coisas ruins, dançando e jogando as coisas ruins. Ele joga assim... as pipocas, que são as flores dele. Então, Omulu é um senhor sábio, é o senhor da cura, é o senhor que veneramos, cuidamos, zelamos. Tem Omulu, que quer dizer o velho, e Obaluaê, o novo. É a família Gi. Gi quer dizer do barro, da lama, que é Omulu, Oxumarê, Ossain, Nanã. É a mãe e os filhos.
Eu tenho a minha doçura, que é das águas da cachoeira, dos rios mansos, e tenho Omulu, o dono da calunga pequena e da calunga grande. Calunga pequena quer dizer cemitério e calunga grande quer dizer mar. Esses são meus dois orixás, são os que comandam, que cuidam da minha casa, da minha cabeça, dos meus filhos, é o que me traz o brilho, minha vida, minha beleza, meus anos se cuidando pra não ficar muito velha – já estou velha, mas tudo bem, mas é meu orixá.