Núcleo Coreografias da memória
Meu nome é Ney Manoel Ferreira. Eu nasci em 13/02/62 – 60 anos. Nasci aqui na Lapa e vivi um bom tempo em Curitiba, depois retornei. Eu tive uma perda do pai, e minha mãe ficou sozinha, praticamente. Eu retornei pra cuidar da minha mãe, mas nasci aqui.
A tradição na Congada, na família, é por parte de pai. A família Ferreira foi a primeira a montar e participar desse grupo. A formação desse grupo foi quando (vocês devem ter um registro) um gaúcho trouxe do Rio Grande do Sul pra cá. Esse gaúcho fez uma pesquisa no continente africano. Vocês sabem que essa dança é afro. Ele fez uma pesquisa lá e, ao retornar, veio para o Brasil já com tudo escrito, mas infelizmente não tem o nome dele. E todos os pesquisadores que estiveram aqui e os que andaram no continente africano não conseguiram encontrar o nome dele, descobrir o nome dele.
Ao retornar ao Brasil, ele veio com a mentalidade de montar esse grupo como era lá na África, chamado o Rei do Congo e a Rainha da Ginga. Dois grupos da etnia africana que eram muito poderosos, mas, infelizmente, o Rei do Congo tinha medo da Rainha da Ginga porque ela era guerreira e gostava da briga.
Ao vir de lá, no Rio Grande do Sul ele não encontrou uma comunidade negra o suficiente pra montar esse grupo. Ele veio para o Paraná, passou por Castro, Curitiba, Paranaguá e Lapa. Encontrou uma comunidade negra em Curitiba e montou a primeira por lá. Em Curitiba começaram a indicar a Lapa, porque tem os Quilombos, e ele se mandou pra Lapa.
Vindo para Lapa, meu bisavô e avô eram funcionários públicos, também, e trabalhavam no quadro da prefeitura municipal. Ele foi conversar com o prefeito, que nesse momento apresentou meus bisavós e avós pra ele. E eles se interessaram, resolveram montar o grupo – “vamos montar” – e já falaram com a família. Quando ele conseguiu montar o grupo e começaram os ensaios, ele se mandou, foi embora, falou: “Vou montar em outro lugar também”.
Ele foi para Paranaguá, montou um grupo e na sequência foi para Castro, lá montou também e já existiam quatro: Curitiba, Paranaguá, Castro e Lapa. A primeira desistente foi a de Curitiba – capital do Paraná, com muito mais recursos. Aí chegamos lá no momento em que iniciei a prosa contando para vocês. E assim veio, eu que sou o mais novo dos oito – dos nove, aliás; eu digo oito homens porque a mulher não fazia parte. Todos os irmãos faziam parte do grupo, menos a irmã, que não quis ser a rainha.
E aí, passando de geração para geração, do meu irmão mais velho até chegar a mim. Quando eu assumi a direção de tudo, os irmãos mais velhos ainda faziam parte. Hoje já temos netos – eu tenho filho dentro, tenho neto, que já estão à frente da coisa. Se eles vão levar adiante, não sei, porque todos eles andam junto comigo. Se eu disser “não” é não, se eu dizer “sim”, eles concordam, nunca foram de discordar. Então, talvez, a hora que eu disser “parei”, vai parar tudo. Isso vem de geração em geração, montado dentro da própria família Ferreira e talvez possa acabar com a família Ferreira mesmo.
A nossa diferença é que temos danças, cantos, versos e contraversos. Há uma relação do grupo com São Benedito, porque todos os cantos e versos que estão no histórico do grupo têm o nome de São Benedito; qualquer verso, praticamente, fala em São Benedito. Festa de São Benedito, apresentação da Congada, não tinha espaço no parque do santuário pra caminhar. No Parque do Monge não cabia ônibus, lá é imenso de grande. Congada vai se apresentar 2h30/3 horas, desciam todos lá do Monge, todos para ver a Congada. Hoje eles realizam a festa nos dias 14 e 16 e nesse dia nós vamos a Aparecida, para onde vamos todos os anos nessa data. Até tinha o encontro de Congadas lá e nos propusemos a fazer o encontro lá. O que acontece é que nós também não estamos aí. Nós só vemos eles postando tudo – a festa não deu nada. No dia 26 nós fizemos a apresentação da Congada, e eu conto para vocês, tá aqui, temos filmado e tudo: não tem espaço para o pessoal ficar na grama, na arquibancada olhando a Congada.
Não é um verso, é um canto, na verdade, que inicia a dança. Então ele começa a declamar:
Nós todos prontos estamos
Com gosto, com alegria
A louvar São Benedito e a Virgem Santa Maria
Cantamos, dançamos, todos unidos (que é muito bonito, ali eles fecham as alas)
Cantando viva! viva! o Santo Benedito
Viva! Viva! Viva! Com muita alegria
Viva Benedito chefe deste dia
Por fazer por ti são tantas
Foi que Deus me deu valor
Dando-lhe o Reino da Glória
Em troca de seu amor
São Benedito que nos guia
Para Jesus Cristo e a Virgem Maria.
Nós estivemos em Palmeiras, em uma homenagem aos 200 anos da Congada (hoje já passa de 200, em abril fez 203 anos). Então, o que falei no início, um grupo como este, de 48 pessoas, para se manter a todo esse tempo, não é qualquer grupo, não! Não é se manter tendo apoio e incentivo, é se manter com suas próprias pernas, interesse da própria família Ferreira para não deixar morrer. Às vezes, faço a pergunta para mim mesmo. Nós com 200 e poucos anos com esse grupo, dos meus entes queridos, martelando em cima disso e até agora não conseguiram nada, então fica difícil de trabalhar.
Os mais novos aqui não digo que se identificam, mas eu sim, porque doei todas essas coisas para o museu. Foi a partir de mim e de meu irmão Miguel, que passamos tudo aquilo que está lá no museu. Um tanto guardado com a gente, outro tanto no museu. Só para vocês terem uma noção, no museu que não é museu, aqui na Casa Vermelha, que a sala está fechada e não apresentam para ninguém, minha roupa está lá. Desde que se monta no museu uma exposição, essa não é a exposição. A exposição tem vários tipos, tem aquela que é para um, dois, três dias, tem aquela que é permanente, que vai ficar para o resto da vida.
O que a Congada representa, para mim, é dizer que meus entes queridos, meus avós e pais estão vivos ainda no grupo, de uma maneira ou outra estão fazendo parte. Que nós estamos representando eles, levando ainda o nome deles, o que fizeram, o que iniciaram. Então, para mim, representa muito. Mas se estivessem vivos, estariam diante disso ainda.