Núcleo Medindo a liberdade
Meu nome é Celio Odenir Alves da Silva e há duas semanas fiz 58 anos, sou de 1964 e meu registro de nascimento está em Campestre da Faxina, lá nos terrenos do meu bisavô. Meus pais: Carlindo Ivan Machado da Silva e Romalina Alves da Silva. Eu sou o filho mais velho e deveria ter uns 8 anos quando meus pais se separaram.
Até esse momento eles viviam bem. Meu pai trabalhava nas usinas da Copel – era a antiga Companhia Força e Luz do Paraná, que hoje é Copel. Inclusive a história que contam é que meu bisavô descobriu onde os americanos fizeram a usina e nós morávamos lá, com meu pai e minha mãe; meu pai era funcionário dessa usina onde meu avô inaugurou junto com o engenheiro da Copel (Copel, não...). Na época ele era engenheiro, era um americano, um tal de Mister Fry – inclusive tem placa de bronze dele lá. Era esse homem que administrava junto com meu bisavô, nessa usina onde meu pai trabalhou 35 anos; trabalhou lá, criou famílias.
Inclusive eu sou testemunha de uma delas. Quando fui pra lá, eu era o primeiro filho, tinha uns 6 ou 7 anos, e meu pai construiu mais famílias, eu tenho mais irmãos. Nesse lugar em Campestre da Faxina, que existem ainda os terrenos, meus pais moravam lá. E meu pai e essa tia viveram junto com o bisavô. O que eu sei, que meu pai contava dos terrenos, é que eles tinham uma vivência muito boa com o bisavô e a bisavó, e tinha muita fartura; trabalhavam na agricultura, tinha muita criação de vacas, cavalos e porcos. E meu pai contava que quando iam matar um porco, que era o que tinha de mais fartura, tinha um paiol, que chamam de tuia, e lá comiam carne de uma semana que eles matavam, de dois meses, carne defumada; tinha aqueles varais cheios, eles chamavam de chiqueiro. Dava pra escolher o que você queria, tanto porco como galinha, que era fartura de fartura.
Todo avô tem um carinho imenso pelos netos. Meu pai, nessa época (ele não mencionou a idade dele, precisamente, mas calculo que o pai deveria ter uns 12 ou 13 anos, por aí), junto com essa tia, que conviveram com os avós. Os outros irmãos do meu pai, que ainda não haviam nascido, não chegaram a conhecer eles, são os mais novos. Meu pai morreu com 84 anos e os mais novos, hoje, devem estar na faixa de 65 anos, que estão vivos ainda. Tem três: tia Lene, tia Rosa e tia Olinda, que não chegaram a conhecer os avós.
Meu pai comentava muito para nós que onde está tanto o acampamento quanto as turbinas trabalhando lá, até os dias de hoje, foi ali que ele determinou um marco para os engenheiros americanos na época – “olha, aqui vai ser isso”; da barragem até onde as turbinas estão trabalhando dá 6 quilômetros. Nessa época meu pai nem tinha o sonho de trabalhar, porque eu calculo que meu pai tinha uns 14 anos.
Meu pai contava que quando ele foi trabalhar nessa usina, ele estava na roça, no Campestre da Faxina, onde era o terreno do bisavô, trabalhando na roça, com a enxada, e passou um caminhão perguntando para os pais dos mais jovens que estravam trabalhando, capinando, que era o meio de sobrevivência, se tinha alguém interessado em trabalhar nessa usina. Meu pai era um rapaz novo, com uns 18 ou 19 anos, recém-casado. Assim o pai contava... disse que subiu no caminhão e que o cara pediu pra levar documento. Meu pai ficou trabalhando muito tempo – de certo como ajudante, creio eu. Meu pai tinha, parece, só o terceiro ano de estudo e depois disso meu pai foi trabalhar pra lá, foi o primeiro emprego dele, e não sei depois de quanto tempo levou a mãe. Eu tinha uns 5 ou 6 anos na época em que fomos morar nessas usinas.
A respeito do avô, ele comentava mais só lá na usina e a fartura que eles tinham no Campestre da Faxina, no terreno do bisavô. Essa propriedade existe e até tem sinais que ainda lembro da minha infância. Quem vendeu foi o genro dele, ou seja, o pai do meu pai que vendeu. Na época meu avô, pai do pai, se vocês forem ver bem está na história isso aí, vendeu para um político, um tal de Quito Ferreira, da família dos Ferreiras. Eu sei que meu pai, até pouco tempo antes de adoecer, comentava com muita tristeza, porque o avô, o pai dele, vendeu os terrenos que eram do falecido bisavô, o meu avô. Na mesma semana que meu avô praticamente deu aquilo por um preço que valia muito mais, esse Quito Ferreira vendeu por 50 vezes a mais. Acho que eles não tinham um sentimento do que valia. O pai até falava em valores, parece que 35 cruzeiros, na época, e venderam para a família da marca de arroz Gadotti – hoje eles que são donos dessas terras.
O velho Serafim, como conseguiu essas terras? Então, o que o pai comentava era que eles eram escravos – o meu bisavô e a minha bisavó. E pelo pouco que estudei na escola me ensinaram que escravo era escravo, não tinha nome como nós temos. Escravo, na época, com todo o respeito, era pouco mais que um animal hoje, porque em cachorro você põe nome, um animal de estimação, e escravo era escravo. Eu soube que esse fazendeiro tinha mais escravos, era bem de vida, e que meu bisavô e a bisavó eram escravos bem conceituados entre os outros e que quando esse senhor faleceu ele não tinha herdeiro pra quem deixar os bens e deixou para o avô. Inclusive, até a assinatura do meu avô, dizem que era a assinatura desse fazendeiro – assim conta a história.
Mais uma história que o velho contava e que não esqueço: que antigamente as pessoas chamavam a atenção dos filhos só no olhar. Disse que esse senhor era assim, que ele dava uma olhada e já dizia tudo para os filhos, para os netos, o que deviam fazer e o que não deveriam. E numa dessas feitas, eles estavam na roça carpindo, não sei o que estavam fazendo na roça, provavelmente trabalhando, e o avô andava pra cima e pra baixo. O avô ficou quase um meio dia assim, ia pra lá e não perguntava nada, só ficava olhando. “O que está acontecendo com o vô?” Trabalhava um pouquinho e de repente começava de novo... Moral da história: um dos primos do pai, só que ele não mencionou o nome de quem, teve coragem e perguntou: “O que o senhor está procurando?”, e o velho respondeu: “Estou procurando meu cachimbo”, e ele estava com o cachimbo na boca. Costume, né? E ele procurando até que um teve coragem de perguntar. Meu pai contou essa história e eu lembrei quando vi o velhinho com cachimbo ali.