Núcleo Nem que me apagues

Relato de Nelson Fernandes (Pelé).

Fui abandonado na casa dele, porque a minha mãe verdadeira era alcoólatra e meu pai brigou com ela, me pegou e me deu para uma família, por causa do alcoolismo dela. Tanto que na época em que ela passou mal e morreu, eu só falava assim: “Vou fazer o quê? Nunca me deu nada, nunca me fez nada”. Entende? Não tenho nada contra, não vou ofender, só que eu não vou... No meu pai, também, não fui.

Eu tive um problema muito sério na minha vida, porque na época, peguei uma idade, comecei a namorar e eu sei que tenho duas irmãs e um irmão, mas não conheço. Olha o que veio na minha cabeça! Só namorava loira, tanto que fui casado com uma loira, minha falecida esposa era loira, porque eu tinha medo de namorar uma morena e ser minha irmã e eu não a conhecer. E aquilo ficou na minha cabeça. 

Por exemplo, eu ia jogar nos lugares, eu jogava muito na Vila São Paulo, no São Paulinho. Tinha um amigo lá e havia uma mulher que falava que era minha parente, mas não falava o que era. Ela me tratava como filho. Um dia ela me pegou de mãos dadas com a filha dela, a mulher quase morreu, não podia namorar a filha dela. Aí coloquei na cabeça: imagine se eu namoro uma pessoa e aí é minha irmã?

Essa escola que fundaram agora, do meu amigo Renato e mais um gurizão, se não me engano “Deixa Falar”, eles queriam voltar o Colorado. Hoje estou com 65 anos e não tenho mais aquele pique. Eu era o primeiro a chegar na quadra da escola e o último a sair. Hoje não tenho mais pique pra isso. Eu moro aqui. Vamos ensaiar no Treze, do outro lado do centro; vamos ensaiar no Capanema, no outro lado do centro. Eles falaram: “Não se preocupe, a gente arruma uma condução”, mas não é assim. É o desgaste emocional que você tem. Você vai sair com uma escola na rua, o que você quer fazer? Quer fazer o melhor. Você tem suas falhas, não é perfeito, mas vai procurar fazer o melhor.

Na época em que fui mestre de bateria: fiquei 5 anos como mestre de bateria e nos cinco anos tirei 10 na bateria. Fazia o mesmo sistema que o Maia fazia: o apito e uma varinha, sinal pros caras, contava no dedo. Tanto que terminava o desfile e eu não sei de onde a mulher aparecia, pegava o meu apito, me chamava de Batuta. Eu comprava uma batuta pra sair e pintava da cor da escola de samba. Ela chegava no desfile, pegava o meu apito e o batuta. Só que a mulher era rápida, quando eu via, sumia tudo. Era legal, você via que o pessoal gostava.

Na época boa do Colorado, nós saímos do Capanema, que a gente ensaiava no campo do Paraná Clube, pegava a Rua João Negrão – sem tocar um instrumento; se tocasse um instrumento, nem desfilava, era pra tocar na hora. Chegávamos na Marechal, fazia o aquecimento no repique, no tamborim e os caras conheciam a nossa batida da escola de samba.

Eu sempre digo, lógico que hoje tudo mudou. Eu fui em vários ensaios e quando você escuta “bumbum-bumbum”... Por que aquele “bumbum-bumbum”? É falta da cadência de surdo. Eles não têm um terceiro, aí fica um “bumbum-bumbum” e junta tudo, e fica como uma maria-fumaça: “tchá-tchá-tchá”, só aquela batida. E nós não, tínhamos o Ceguinho e o Mutunga, que faziam aquele “brugudun brugudun”. Nós saíamos com dez surdos, com uma zabumba, fazia aquele “brugudun tchicabum brugudun tchicabum”, e tinha aquele terceiro, hoje só fazem dois. É bonito, mas só que eles usam muitos surdos.

Você viu no Rio de Janeiro como os caras tocam? Eles pegam a caixa e tocam aqui; se pegar, cai. Na minha época, no Colorado, as caixas faziam “taraticataca”, os repiques iam repicando, eu pegava os tamborins e fazia os caras fazerem “taracatá ticataca ticataca”, uma batida pra casar com o “bumticubum”, se não vai ficar “bam-bam-bam”. É o que sempre digo pros caras: “Você vai tocar hoje?” Tem gente que pega o instrumento... “Cara, você não toca assim...” pega um instrumento aqui (som de pandeiro tocando), você fazendo a marcação aqui, faz o que você quiser. Agora o cara dá uma batida diferente, entende?

Era Colorado, Embaixadores da Alegria, Não Agite (que ensaiava no Coritiba), Embaixadores (no Atlético) e tinha a Dom Pedro, que virou Mocidade Azul. Tudo escola boa, era uma época boa. Daí começou a vir Unidos do Boqueirão, aí tinha a escola de samba do Chocolate – ele era um sarro, pegou dinheiro da prefeitura, comprou uma televisão para os favelados assistirem, colocava na janela da casa dele e enchia o terreno de favelado. A prefeitura ia fazer o quê? O Maia era compadre e muito amigo dele, sabia que ia estourar a bomba. A gente guardava muita fantasia antiga e dava pra ele pra sair com a escola dele. Ele tinha uma bateria boa na escola dele. Pra ganhar dele não era fácil, porque ele também tinha conhecimento, conviveu com o Maia, os dois que começaram. Nós tínhamos muitos ensacadores que saíam na escola de samba, tinha muitas travestis. A Márcia tinha 2 metros de altura por 2 de largura, era uma tremenda travesti e tinha dinheiro. Aí você fazia o quê? Pegava esses que ficavam responsáveis pelo carro alegórico, porque eles tinham empresa e conhecimento.

Acho que você nunca ouviu falar no Quatro Bicos, né? Era uma boca que tinha no Cajuru; passando o Hospital Cajuru, quando termina a rua, uma casa que tem agora ali, era o Quatro Bico. Era uma mulher mais bonita que a outra. O que a gente fazia? Concurso da Rainha da Bateria e punha as mulheres pra participar. Meu Deus do céu! A quadra lotava, ficava um corredor pra andar – ali você aproveitava, sabia que ia vender um caminhão de cerveja, de cachaça, caipira e batida de maracujá. O tio Nelson que fazia a batida de maracujá, aprendi com ele. Pegava uma bacia grande, pegava maracujá, jogava tudo ali e eu só ficava olhando.

As casas hoje não valorizam os músicos. Na época em que eu tocava no Carreteiro, tinha Metrô, Clube Um, Friks, Jatão, Moraria... A casa que pagava melhor era o Carreteiro, porque o proprietário tinha uma mentalidade assim: “Eu vou pagar o que vocês querem, mas vocês vão tocar o que eu quero. O que eu quero? Toda semana, duas músicas novas”. Nós erámos seis. Toda semana tinha seis discos novos pra gente aprender. 

Uma vez fui tocar em Joinville, ganhei o cachê sem tocar. Eu cheguei, o Maia estava entrando, o cara pôs a mão no meu peito e o Maia falou: “Algum problema?”. O cara respondeu assim: “Preto não entra aqui na sociedade”. Ele olhou pro cara, falou “muito obrigado”, e voltamos pro hotel. Aí o cara ligou e ele falou: “Não, se meu filho não pode entrar na sociedade pra tocar, o conjunto não vai tocar. Vocês já me pagaram o cachê, simplesmente”. E nós tínhamos advogado que andava com a gente. “Temos um advogado aqui, qualquer coisa vocês falem com ele”. Entramos na van que nos levou, voltamos embora e ganhamos o cachê, lá em Joinville. 

Em São Francisco, Praia do Ervino, não entrava preto. Tem muito racismo. Às vezes tem pessoa que fala “ô, neguinho” com carinho, mas tem pessoa que fala com ignorância e a gente não é bobo, você vai convivendo e vai vendo o olhar da pessoa pra você.