O COVEIRO
Entre março e abril de 2025 o MUPA acolheu e apresentou dez sessões de O COVEIRO, espetáculo que integrou a Mostra Interlocuções do Festival de Curitiba.
A peça de Diego Marchioro e Fernando de Proença transita na intersecção entre teatro, artes visuais e cinema. Durante o percurso da peça, o ator Diego Marchioro monta, diante do público, uma instalação a partir de uma coleção sobre vida e morte, em interação com vídeos, obras de arte e fragmentos de textos. Assim, os espectadores fruem um trabalho de teatro que, durante seu percurso, se transforma em uma instalação de artes visuais.
A instalação permaneceu aberta para visitação nos horários de funcionamento do museu durante o período de ativações, com obras de Guto Lacaz, Érica Storer, Milla Jung, Cida Moreira e Ná Ozzetti.
Texto crítico
Que tipo de proposta/provocação/evento se participa ao adentrar silenciosamente um museu de arte contemporânea no escuro até um espaço cênico numa sala expositiva, onde aos 3 sinais de campainha de teatro inicia-se uma proposição artística multimídia no meio do embate de corpos com os espectadores do Museu ou com o público que veio ver uma peça? O Coveiro é uma peça-instalação que nos lança num território instituinte(1) no qual as designações se borram, os campos desbordam, exigindo-nos lançar mão de outro léxico para localizar o acontecimento que se seguirá pela próxima hora de “exibição”.
O personagem da atuação é um artista que encena procedimentos de criação enunciando reflexões sobre vida e morte, natureza e cultura, a partir de alguns elementos poéticos e significantes, como ovos, músicas, recortes de textos/pensamentos, engrenagens, escavações e obras visuais e audiovisuais. Na cena, que acontece entre a materialidade dos elementos que o artista vai moldando e a virtualidade das imagens audiovisuais dos vídeos que apresentam outros personagens, ressoam vozes que cantam, conversam, profetam e preenchem o cubo branco do museu, como sala escura de teatro.
Ao acompanharmos o artista nesse seu processo de fatura de obra, e as noções conceituais que do processo se desgarram, acompanhamos também a alteração das coisas movidas na cena até que alcançam seu potencial de imagem, no que parece ser um ofício mesmo de artista; a transfiguração da coisa para sua imagem que, como na água com sal, faz sentir o gosto de mar. Uma encenação do mundo da arte para lá de experimental. Experimental, queremos dizer, como na concepção do artista Hélio Oiticica para quem “o experimental não é arte experimental” (2). Para ele, a arte como a apreendemos atualmente diz respeito a uma constituição sistematizada por uma série de fatores externos a ela mesma - sua prática, pensamento, sistema, circuitos e circulação; em contrapartida o experimental seria o vetor que pode atravessar transversalmente a estrutura desse campo e de outros campos (teatro, cinema, literatura, artes visuais) agenciando territórios em aberto com futuros por virem, ainda não nomeados. Assim que, nessa analogia, O Coveiro como território experimental pode ser apreendido para além de seu universo plástico (artes visuais) ou dramatúrgico (teatro), mas como manifesto estético-político e ético orientado por meio da relação com a experiência sensível com o público, independentemente de quais linguagens forem lançadas mãos para tal.
Em artes visuais isso é dizer que estamos no “campo ampliado” da arte, que se refere segundo Rosalind Krauss (3) a concepção de práticas que já não são definidas em relação a um determinado meio de expressão, ou de linguagem específica, mas funcionam como “operações lógicas dentro de um conjunto de termos culturais para o qual vários meios — fotografia, livros, linhas em parede, espelhos, esculturas ou qualquer mídia — podem ser usados”. Ao relacionar vetores de arte e não–arte, o campo ampliado se fundamenta na produção concomitante e não-hierárquica da visualidade, discurso e enunciação. Para Ricardo Basbaum contemporaneamente no “campo ampliado” toma-se a cultura como paisagem não natural e desse modo o artista pode configurar o território onde se move:
sua ação transforma-se numa intervenção precisa ao mobilizar instabilidades do campo cultural (regiões da cultura que permitem problematizações, conflitos, paradoxos), por meio de uma inteligência plástica que torna visível uma rede de relações entre múltiplos pontos de oposições, onde o trabalho de arte é um dispositivo de processamento simultâneo e ininterrupto, e nunca uma representação, destas relações. (4)
Então, tomemos O Coveiro como dispositivo de mobilização em exercício experimental de constituição de novos territórios de linguagem. Para o crítico Ronaldo Brito, essa transformação de linguagens na arte contemporânea é uma luta na ordem simbólica, e, por consequência, é uma luta que desmonta estruturas hegemônicas já há muito estabelecidas, e isso é o que a torna primordialmente uma luta política. Se a reordenação de linguagens é um embate com as estruturas hierárquicas de poder dentro dos campos estabelecidos,some-se a isso em O Coveiro o fato de acontecer num espaço expositivo dentro um museu de arte contemporânea.
Desse modo, a mistura que acontece em O Coveiro suplanta a coreografia da verticalidade por uma outra horizontal. Campos estabelecidos, artes cênicas (dramaturgia), artes visuais (visualidade), literatura (escrita), tomam aspectos mutantes, reconfiguráveis num movimento/dança/namoro que nos convoca ao campo da imaginação, imagem-ação - essa capacidade de vislumbre e movimento. Essa provocação é um chacoalho na crise da falta de imaginação política dos tempos atuais, dando luz ao impasse, da mesma forma que o carnaval abre espaço para a projeção de um “E SE” imaginário sobre zonas de estabilidades.
Por esse mecanismo dinâmico de misturar as linguagens, mídias e instituições, podemos pensar O Coveiro como acontecimento. Para Gilles Deleuze o acontecimento se equipara a uma batalha quando o que vemos dela é sua problemática e suas reverberações anacrônicas tanto individuais quanto gerais, como o autor diz:
Onde está a batalha? Senão em nossas cabeças e nas cabeças dos envolvidos, acontecendo para cada qual de modo diferente. A batalha, que não pode ser vista simplesmente como um evento cristalizado numa significância, é a soma de tudo o que se diz dela, o que a irrompe e a recorda. Ela sobrevoa seu próprio campo, neutra com relação a todas as suas efetuações temporais, neutra e impassível com relação aos vencedores e vencidos, com relação aos covardes e aos bravos, e por isso tanto mais terrível, nunca presente, sempre ainda por vir e já passada... (5).
Então, O Coveiro, no contexto do Museu Paranaense e do 33º Festival de teatro de Curitiba, é esse acontecimento-batalha, em todos nós, em cada um, aquilo que foi e continuará sendo, e o que virá desse encontro de “singularidades, pontos de retrocesso, de inflexão, desfiladeiros, nós, núcleos, centros; pontos de fusão, de condensação, de ebulição, pontos de choro e de alegria, de doença e de saúde, de esperança e de angustia, pontos sensíveis” que traz para a cena da cidade problemáticas da arte, da filosofia e da poesia de forma generosa para cada espectador inquietar-se com equações passíveis de serem tocadas como ovos que cozinham, são comidos, viram obras.
Inquietados podem ficar também com a chegada da voz que os alcança na palavra dita - pelo canto, pelo poema, vista/lida nos lambes do Guto, no neon - palavras bem-ditas, precisas, inesgotáveis, que se desdobram em percursos significantes além da cena, que confiam na percepção desse público-espectador. Bem-ditas, ao contrário de malditas, porque “promessam” carregadas de poesia. Se para Maurice Blanchot a linguagem não re-apresenta o mundo exterior, mas funda sua própria realidade (6), em O Coveiro vemos na sua realidade de cena uma dimensão de existência fundada pela palavra bem-dita, que põe em crise o estado das coisas. Nos agita.
Também inquietante é ação verbal cartografada do começo ao fim da peça: mover, cozinhar, comer, andar, sentar, colar, falar, cantar - acompanhamos o artista fazer todos essas ações sem se economizar no tempo de sua execução. O tempo discorre, passa, e vemos o tempo passar e acontecer. Um contratempo ao tempo contemporâneo, que é editado, cortado, subtraído, apressado, acelerado, time-lapse e não o vemos passar na realidade da vida. Aqui vale a encenação do tempo que nos lembra de sua duração. Eis que surge, por isso, além do teatro, do museu, também um dispositivo-cinema, que simula o tempo ordinário da vida real já que na vida mesmo, a real, o estamos suprimindo. Repôr essa duração de tempo da vida e da poesia, um pensamento-ação refletido na escala humana, na dimensão coletiva do estar vivo, vivos no fino traço que dá contorno ao homem em sua dimensão sensível, no estar presente no tempo presente.
O Coveiro é uma peça-instalação, acontecimento e dispositivo, em que as pessoas se olham, se acompanham, se veem-vendo, e passam de espectadores a públicosagenciadores de uma proposição coletiva que anima, no sentido de dar alma, ânima, o cubo branco do Museu e a sala escura do teatro e nos faz perceber que o experimental é emancipador quando propõe um exercício de alteridade coletiva, reorganiza a ordem das linguagens e destitui os dados fixos em favor de novos devires.
1.Tomando a noção de instituinte como o exercício da crítica como uma condição necessária daquelas práticas que operam contra as formas atuais de governabilidade sem se limitar exclusivamente a aponta-las ou desmascará-las, mas extraindo consequências daquilo que Foucault chama o “não querer ser governados dessa forma” citado por EXPÓSITO, Marcelo, em Producción Cultural y Practicas instituyentes. Líneas de ruptura em la crítica institucional. Coleção Mapas, número 20, Traficantes de Sueños editora, Madrid, 2008.
2. OITICICA, Helio. Experimentar o experimental, em OITICICA FILHO, Cesar e Vieira, Ingrid (Org). Encontros, Helio Oiticica, Rio de Janeiro. Editora Azougue, 2009.
3. KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. In: Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
4. BASBAUM, Ricardo Roclaw. Tornando visível a arte contemporânea. In: Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.
5. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998. vi BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita - a palavra plural. vol. 01. São Paulo: Escuta, 2001.
6. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita - a palavra plural. vol. 01. São Paulo: Escuta, 2001.
Milla Jung