Retomada da Imagem

teste

 

Tandó

de tan, chuva

dó, raio = Arco-iris

Dei-lhe o nome de Candida

Candida Tandó. Aceitou mas não

quiz batisar-se. 1903

Apud. notas de Romário Martins

Das centenas de fotografias que integram o acervo do Museu Paranaense, a fotopintura Sem título, de autoria desconhecida, produzida no início do século XX, desencadeou inquietações que marcaram as conversas realizadas no projeto “Retomada da imagem”. Nos encontros, entre agosto e novembro de 2021, os artistas indígenas Denilson Baniwa e Gustavo Caboco relacionaram a imagem ao contexto atual, marcado pelas várias manifestações indígenas contra o Marco temporal. Na combinação entre os elementos chuva e raio, Tandó significaria arco-íris — sugerindo que mesmo tempos turbulentos podem reservar alguma surpresa positiva. Outra reflexão em torno dessa fotopintura apontou para o aparente desconforto que a figura demonstra, denunciada por suas mãos que entrelaçam o corpo e a expressão de seu rosto. Junto a essa imagem, algumas outras se somam. O retrato de um homem Xavante. A cena inquietantemente legendada “Como o índio sóbe no pinheiro para colher pinhão”. Três sujeitos Xetá sentados, tendo ao fundo o antigo aquário do Passeio Público em Curitiba. Imagens e legendas como essas mobilizaram os artistas e equipe do Museu a pensarem sobre o contexto de produção dessas fotografias e os sentimentos dos sujeitos retratados, bem como dos convidados no contato com elas.

*

Há 145 anos o Museu Paranaense fala sobre os mais variados povos indígenas - Karajá, Xetá, Bororo, Laklãño-Xokleng. São 145 anos informando diferentes gerações onde e como essas pessoas vivem, qual língua falam, de que forma se adornam. As fotografias, produzidas por agentes do museu e outros autores, são de diferentes momentos do século XX, mas todas apresentam como pano de fundo o pressuposto do “processo civilizatório” da humanidade, modelo sobre o qual as imagens - manipuladas - dos corpos indígenas poderiam dar testemunho, ora de afastamento, ora de aproximação: construções iconográficas para comprovar o colapso dos povos e suas culturas frente à homogeneização ocidental, ou para comprovar a “selvageria”. Esses objetos, expostos em contextos variados, ajudaram a humanizar ou a reforçar o estereótipo do que é ser indígena? 

O projeto “Retomada da Imagem” inscreve-se no esforço desta instituição em fazer diferente: promover o encontro entre sujeitos indígenas e essas imagens, ouvir o que o encontro suscita, para a partir disso assumir uma nova postura frente ao seu acervo e práticas expositivas. Falar e mobilizar esse acervo com os indígenas. 

O impulso por vasculhar as “gavetas empoeiradas” de museus como este vêm da contundente atuação dos artistas indígenas contemporâneos no Brasil que, absorvendo arquivos e acervos em seus trabalhos, demonstram uma vontade de reescrita da história. Ao acessarem o que Achille Mbembe aponta como lugares que guardam “fragmentos de vidas e pedaços de tempo, sombras e pegadas inscritas em papel”, esses artistas reivindicam autonomia no discurso sobre si e seu povo.

Etapa Aproximação com o acervo

O convite aos artistas Denilson Baniwa e Gustavo Caboco se deu em julho de 2021. Na ocasião do convite, a equipe do Museu propôs aos artistas a construção do projeto em conjunto, e por conta disso todo o processo aconteceu de maneira orgânica e horizontal. Havia apenas três prerrogativas: trabalhar com o acervo fotográfico, com uma dada verba e que o resultado do que quer que fosse produzido pudesse ser compartilhado com o público mais amplo. O projeto tinha um prazo e um ponto de partida, mas Caboco e Baniwa foram construindo pouco a pouco, junto com a equipe do museu, o escopo do que se tornou a Retomada da Imagem.
Desde os primeiros encontros foram se delineando alguns interesses por parte dos artistas, sendo o principal deles a vontade de criar uma historiografia indígena sobre as imagens, mas sem a rigidez do fazer historiográfico à moda ocidental. A ação seria, pelo contrário, mais poética, com uma narrativa formada por textos, desenhos, fotografias e outros apontamentos.
O acervo imagético que é objeto desse projeto inclui cerca de mil fotografias, diapositivos, negativos fotográficos e em vidro, fotopinturas e outras representações. Denilson Baniwa e Gustavo Caboco optaram por um recorte temporal que possibilitasse o diálogo com pessoas que tivessem alguma relação direta com os retratados, e portanto aprofundaram-se sobretudo nas fotografias realizadas a partir de 1950. Boa parte do conjunto fotográfico eleito pelos artistas é oriundo da Coleção Vladimir Kozák do Museu Paranaense, que integra o programa Memória do Mundo da UNESCO - Brasil.
“É importante a gente fazer, como diria o Ailton Krenak, essas alianças afetivas onde aquilo que nos afeta pode ser compartilhado e juntos a gente pode pensar uma solução ou uma resposta para alguma pergunta que esteja aberta”, indica Baniwa.

Etapa Museu-Ateliê 

Retomada da imagem: encontros decoloniais entre artistas indígenas e as fotografias do acervo do MUPA

Imagine um complexo acervo audiovisual, composto por mais de mil objetos produzidos em diferentes épocas que buscavam representar o cotidiano dos povos indígenas no Paraná. Um acervo que foi constituído sob a lógica colonial ao longo de muitas décadas e que esteve sob a perspectiva e cuidados de pessoas formadas pelo pensamento eurocêntrico. Quais são os impactos dessas imagens para a sociedade ocidental? Ainda mais importante, quais são os impactos dessas imagens para os povos originários retratados?

Questões fundamentais de revisão historiográfica e ética sobre as imagens têm sido levantadas pelo MUPA com a intenção de promover uma reflexão profunda sobre o seu próprio acervo e os definir caminhos que o Museu deseja trilhar nos próximos anos.

Como um dos passos iniciais dessa extensa tarefa, o Museu convidou os artistas indígenas contemporâneos Denilson Baniwa e Gustavo Caboco para encabeçar o projeto “Retomada da Imagem”. Os artistas mergulham juntos neste conjunto de acervos produzidos por não-indígenas para encontrar as armadilhas, construções, mas também memórias ali presentes que darão origem à criações artísticas.

Nos dias 11 a 15 de novembro de 2021, o MUPA se transformou em museu-ateliê no qual Baniwa e Caboco farão uma pequena residência artística e contarão com a presença de cinco outros indígenas convidados: Camila dos Santos e Thais Krīg (Kanhgág), Indiamara e Nicolas Paraná (Xetá), Juliana Kerexu, Ricardo Werá, Flávio Karai e Elida Yry (Mbyá-Guarani). Durante esses dias, o público visitante pode acompanhar de perto os processos criativos e a produção dos trabalhos.

Exposição

 

A exposição Retomada da Imagem conta com um conjunto de criações artísticas em painéis e nas paredes, realizadas no encontro presencial de Caboco e Baniwa, com Camila dos Santos e Thais Krīg (Kanhgág), Indiamara e Nicolas Paraná (Xetá), Juliana Kerexu, Ricardo Werá, Flávio Karai e Elida Yry (Mbyá-Guarani) e Lucilene Wapichana (Wapichana) em novembro de 2021. No centro da sala, encontram-se algumas das fotografias do acervo, que espelhadas nas produções artísticas se transformam, trazendo outras inscrições, palavras, nomes e o avizinhamento com diferentes elementos, permitindo leituras outras. 

Instituições como o Museu Paranaense, que ajudaram a informar a lógica colonial que objetifica corpos subalternizados - negros e indígenas -, precisam tomar para si a tarefa de contribuir para reverter esse padrão.

Publicação digital

O projeto contará com mais uma etapa que resultará em uma publicação on-line, prevista para 2023.