Aos espíritos minerais
MOSTRA TEMPORÁRIA
Em cartaz de 10/2024 a 03/2025
A exposição individual "Aos espíritos minerais", reúne trabalhos da artista mineira Luana Vitra. A mostra é composta por desenhos e esculturas, algumas inéditas, que refletem acerca de qualidades espirituais e afetivas de elementos do reino mineral, como ferro, cobre e chumbo. A pesquisa da artista sobre os minerais é intimamente ligada à sua origem mineira e propõe reflexões sobre os traumas de um passado marcado pela escravidão e séculos de extrativismo. A partir dessa paisagem, a artista se conecta com o reino mineral para refletir sobre corpo, afetividade e transformação. Em “Aos espíritos minerais”, que tem a pedra de minério de ferro como elemento central, a artista coloca em diálogo a gravidade, a espiritualidade, a atração e repulsão, reconfigurando símbolos e subjetividades por meio da matéria.
Texto institucional
Aos espíritos minerais, de Luana Vitra, chega ao Museu Paranaense (MUPA) como o convite à imersão em um tempo que desafia a linearidade ao combinar o etéreo e o palpável.
Por muito tempo, a História foi narrada como um progresso inevitável em direção ao futuro. No entanto, Luana nos conduz a ouvir as vozes de uma terra que pertence tanto ao passado quanto ao presente – uma terra “exausta”, mas que persiste em se fazer escutar. Uma Terra nascida do magma, que, ao explodir do seu núcleo, demonstra que até na letalidade há matéria para gerar vida.
Com desenhos e esculturas feitas em ferro, cobre, chumbo, latão e aço, a artista de Contagem – Minas Gerais evoca sua trajetória pessoal e as narrativas de sua família para resgatar uma história que não cessa: a de uma região e seus incontáveis sujeitos, ambos moldados pela extração do minério.
Luana realiza uma escavação arqueológica que investiga e traz à tona as camadas de materiais e palavras inscritos em diferentes cronologias. Em uma dualidade própria, suas lanças, que apontam para um futuro desejável, também narram as dilacerações da carne, da alma e da pedra como recurso econômico. O ferro oxidado atesta a condição mutável de uma essência viva; o cobre, fundido à força, brilha ao ser contemplado; e o chumbo, que pesa nos ossos, sustenta a estrutura de tudo que, mesmo gerado no espírito, só se torna visível pela matéria.
A acolhida desta mostra integra-se em uma dinâmica que se faz contínua no MUPA. Pautado pelo objetivo de se consolidar como plataforma pública, plural e aberta à escuta, o museu revisita constantemente seu acervo e sua memória. Seja por meio das potencialidades da arte contemporânea, ou pelas disciplinas clássicas de pesquisa da instituição – as quais se conectam de maneira íntima aos povos, às narrativas e aos vestígios humanos –, o MUPA se une a Luana na busca por um movimento perpétuo de tempo e espaço.
O público é convidado a ver e ouvir os espíritos minerais, a reconhecer-se nas vozes que Luana alça a partir do solo e a perceber tudo aquilo que o minério tem a contar.
Texto crítico
Seriam os mistérios espíritos minerais a dançarem sob o solo?
Na ponta da lança rebola o cobre que sucumbirá à caça?
Quem com ferro fere liberta o bronze da estátua na praça pública?
Quem tirou o ouro pra dançar perdeu o âmago ou ganhou ilusões?
Na festa do viver e do encarnar, dançam todos no salão cobertos de ouro e prata, sob o som do seresteiro que larga acordes maiores com seus dedos apertados sobre as cordas de sua velha viola. Som e vibração através das mãos ligadas às almas minerais. Ali bailam morte e vida abraçadas.
Se pensarmos em belas artes, notamos fortemente as injustiças de um pensamento que define que orquídeas ou aviões não fazem parte deste catálogo de belezas. Belas artes não são também búzios caídos num tabuleiro para que se leiam os mistérios? Não são ainda os desdobramentos torcidos na forja de um ferro? Como não chamar de bela arte a descoberta do azul?
'Ferida violenta
Violeta quando blue.'
A arte no Brasil me parece a mais bela criatura nascida das desgraças. Acadêmicos irão chamar de improviso empírico, mas é fundamental que nada mais sobre as belezas seja determinado a partir deste único ponto de vista.
Na infância, minha mãe colocava uma lata de açúcar na cadeira para que eu pudesse me sentar e alcançar a mesa. Na porta de casa, espadas-de-são-jorge eram plantadas numa velha lata de óleo de soja chamado Rubi. Rubi é uma pedra preciosa, mas também é a minha filha.
O latão que aloja a planta que traz proteção para a casa e a lata que nos permite sentar à mesa com o colo pareado ao prato de comida, imediatamente se reorganizam e partem de utilitário para a categoria de bela arte.
O minério que gera conforto é soberano das belezas.
Brilha na alma uma realidade sem juízo, pois cada chão tem sua história que dará em arte.
Luana, assim como eu, também tem no pai a conexão com a terra. Aprendeu sobre armadilhas na mata e certamente as involuntárias armadilhas da vida. Seu pai, que entende sobre todas as madeiras e gosta de plantar flores, muito possivelmente semeou em seu coração as mais belas artes através de seu cheiro.
Crescida sobre o ferro que constitui o solo mineiro de sua existência, Luana está ancorada nessa materialidade. Desde seu bisavô mineiro e toda uma família ligada a metais e minerais anteriores a seu corpo, até a mola do tempo atual lhe empurrar para essa excursão transformadora e metalinguística, Luana traz no sangue o ferro que lhe garante a saúde e o sustento.
Essa arte tão bela que habita nela nasce do desejo de abordar este assunto de outro ponto do tempo. Ali também residem música e saberes feiticeiros. Uma avó é uma Diva que, certamente, protegeu a entrada de sua casa com espadas-de-são-jorge plantadas em uma lata para lhe dar o azul.
Gosto do que sou quando estou com você
Tem gosto de fundo azul
O cheiro de água que sinto
Quando te encosto
Entender a espiritualidade dos minerais é um jeito de entender a si própria, ou a humanidade ao redor. Enfeitar o mundo e decorá-lo é uma escolha, mas não necessariamente com argolas pendentes nas orelhas, veja só.
A mãe usa o ouro de seu solo para poetizar as belezas com palavras que degustam e sorvem a vida. A criança vira mulher poeta e brinca com as pratas porque entende seus minérios em lugares mais profundos que sua cara. O ouro brota como bálsamo onde nascem as inquietações de desejos de arte.
É preciso escutar a matéria, falar com os olhos, cheirar as cores.
Luana se apaixona pelo mineral a fim de entender como ele se apaixona, e nesse enlaçamento de afetos entre reinos tantos brotam as mais belas artes que vêm do antes do antes de antes de ontem. Ela se põe no mundo através de seu propósito artístico, como uma alquimista mística. A quântica se dá intuitivamente e constitui suas obras, pois bota seu corpo como um cavalo a fim de dar passagem às essências espirituais que curam suas próprias memórias a partir das memórias dos mundos.
Suas obras, como estas presentes na exposição “Aos espíritos minerais”, no Museu Paranaense, são como um abraçamento nas asas do vento. Tudo se molda para reverência deste ancestral de corporeidade inorgânica e fundante.
Uma explosão de cores e acordes que acordam outros sentidos, pois quando a prata baila em seu colo que gira na ciranda, ela emite o som de si.
Não há vida que suporte existir sem ferro.
Anelis Assumpção