Lange de Morretes: entre-paisagens
Em 2017, o Museu Paranaense passou a salvaguardar em seu acervo uma coleção de obras do artista Lange de Morretes. De lá para cá, uma parte das pinturas dessa importante coleção passaram por um minucioso processo de restauro, e agora, fazem parte da exposição "Lange de Morretes: entre-paisagens".
A mostra, com curadoria do pesquisador Marco Baena, reúne pinturas de Lange de Morretes já restauradas e pouco conhecidas publicamente. Além de outros materiais, como fotografias, documentos e conchas, que revelam a vertente científica do artista na área de malacologia - um ramo da biologia que estuda os moluscos.
Texto curatorial
A montanha: pilar da criação. Eixo cósmico. Axis Mundi. Meio de ligação entre o céu e a terra, a verdade e a ilusão: arte? Ciência? Os picos do Marumbi são como dedos que seguram as estrelas no firmamento, sobre uma pequena cidade do litoral paranaense: um pedaço do Brasil. Frederico Lange tornou-se Lange de Morretes quando se viu longe da terra natal. “Se queres ser universal, começa por pintar a sua aldeia.” Aqui, foi símbolo, muitas vezes incompreendido, exilou-se. Em sua fuga romântica, transitou por metrópoles alemãs, nas quais frequentou importantes instituições de ensino. Durante a Primeira Guerra Mundial, abrigou-se nos bucólicos Alpes da Baviera. Ali, visualizou a Serra do Mar paranaense nos Montes Alpinos, ou ainda, viu nos telhados dos vilarejos bávaros a histórica Casa do Ipiranga, em que passou sua infância. Seria defeito do coração?
De volta ao Brasil, tornou-se artista enigmático, cientista sensível e professor generoso. Embrenhou-se na floresta e conversou com pinheiros, encantou-se, em busca de um Locus amoenus em que a arte, a ciência e a educação fossem melhor valorizadas. Isolou-se para falar ao universo. Muitas vezes dentro de sua própria concha: paradoxo? Alternou-se entre a Escola e a Floresta. Realizou exposições e expedições, lecionou os segredos das artes para jovens de todas as origens e classes sociais.
Décadas depois, em outra dessas fugas, mudou-se para São Paulo, onde mergulhou no fazer científico, após o cenário artístico lhe parecer insensível e mercantilizado. Lá, aplicou sua criatividade em rigorosas pesquisas malacológicas. Durante viagens pelo litoral dos dois estados, observou e coletou bivalves e búzios: seus amuletos.
Não são os sambaquis montanhas de conchas? Guardiões dos segredos de um passado ancestral. Memória: habita o espaço-tempo. O movimento espiralado da concha de um caracol. Vórtex, galáxia. Um eterno retorno: a montanha virando mar, que volta a ser deserto. Concha: um corpo-casa, côncavo e convexo: vazio Zen.
“Ver o mundo em um grão de areia.” Montanhas e vales na poeira cósmica, fotografada por telescópios que orbitam no espaço, ou mesmo cordilheiras que surgem na lente de um microscópio, o Marumbi no zoom de uma câmera fotográfica. Ouvir o barulho do mar em uma concha: não é nisso que consiste olhar a paisagem? Representação mimética do cenário natural ou manifestação da natureza interna do pintor? Poesia escrita no idioma dos pinheirais, cataratas e morros. Diferente da exatidão dos mapas e desenhos cartográficos, dos catálogos de espécimes. Desenvolve-se no ritmo do sonho, da lesma, da câmara lenta, da melancolia dos gênios e dos loucos, dos artistas e dos cientistas: das montanhas. É viva, cíclica. Vislumbre do perpétuo no efêmero: um coração de bananeira.
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Marco Baena
Sobre o artista
Com participação ativa no desenvolvimento do Movimento Paranista, em um momento em que estéticas regionalistas contribuíram para a formação de uma identidade nacional, o pintor, desenhista, gravador e professor brasileiro nasceu em 1892 no pequeno município de Morretes, entre a Serra do Mar e o litoral paranaense. Com apenas 18 anos, já era um exímio pintor de paisagens e aluno prodígio de Alfredo Andersen. Nessa época, viajou para a Alemanha em busca de uma formação mais profunda. Mas Lange não se limitou às belas artes. Ali, iniciou seus estudos de anatomia e outras ciências, em especial a biologia, que desenvolveria em paralelo à formação artística nas décadas seguintes.